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Política do cuidado e acolhimento muda a trajetória da população em situação de rua em São Gonçalo

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Publicado em:  04/06/2019

“Eu era só uma menina quando meus pais faleceram. Estudei até a quarta série, e quando perdi eles, abandonei a escola. Engravidei muito cedo, hoje tenho duas filhas e dois netos. Moro na rua há 29 anos, e 11 só aqui em São Gonçalo. Tenho meu companheiro que é trabalhador e não uso nenhuma droga, não. Semana que vem é meu aniversário e eu quero festa. Moro na rua, mas sou gente também!”. Essa é a Patrícia de Oliveira, de 42 anos. No dia 6 de junho completará 43, e quase metade da vida foi vivida nas ruas das cidades do Rio, Niterói e São Gonçalo. É negra e vive em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade, assim como a maioria das pessoas em situação de rua. Sua casa são as calçadas da região da praça Zé Garoto, em São Gonçalo, município com mais de 1 milhão de habitantes, onde mais de 800 pessoas que assim como Patrícia vivem nas ruas, são acolhidas e assistidas pelas políticas públicas que compõem a porta de entrada aos cuidados a essa população: Assistência Social, através do Centro de Referência Especializado no atendimento à população em situação de rua (Centro POP), e Secretaria de Saúde, através do Consultório na Rua, Núcleo de Saúde da Família e Rede de Saúde Mental. Na contramão das políticas higienistas e de abrigamento compulsório, na décima sexta maior cidade em número de habitantes do Brasil, a política pública efetiva é o cuidado.

Partindo do princípio de que toda pessoa tem história, e de que toda história parte de um determinado território com características diversas, o Centro POP é uma política pública municipal que acolhe, registra, realiza oficinas de empregabilidade e durante parte do dia funciona como casa temporária para as pessoas em situação de rua. Na unidade, que fica localizada no bairro Mutondo, é possível realizar cuidados de higiene pessoal, almoçar, ser inserido no Cadastro único (CadÚnico), que é a porta de entrada para os benefícios do Governo Federal, realizar pedidos de documentação de identificação, além de proporcionar o convívio social com acompanhamento de assistentes sociais, educadores e psicólogos, que realizam um trabalho de escuta de cada uma dessas centenas de histórias que passam por ali todos os dias.

De acordo com a coordenadora do Centro, Tatiane Cavalcanti, grande parte das pessoas em situação de rua em São Gonçalo hoje são migrantes de diferentes cidades, dentre elas Itaboraí, Tanguá, Niterói e Rio de Janeiro, além de uma grande predominância também de pessoas de diferentes cidades do Nordeste do Brasil. Os diferentes sujeitos que compõem a população em situação de rua na cidade são conhecidos a cada abordagem realizada pelas equipes da assistência, que para além do cuidado na unidade, circulam os diferentes bairros da cidade para assegurar que a política da assistência, que é universal e um direito de todos, chegue a cada um desses cidadãos.

“Os serviços de abordagem não tem nenhuma intenção de um trabalho repressor de higienização, mas, busca viabilizar o acesso aos direitos básicos desse cidadão. É oportunizar a possibilidade de uma nova história, garantindo a proteção desse indivíduo. Muitas pessoas têm a visão de que o abrigamento vai resolver tudo, mas precisamos respeitar o direito dessa pessoa à escolha. Ele escolhe estar no abrigo ou não, estar em situação de rua ou não. E se ele entender que para ele não é melhor estar no abrigo, precisamos entender e colocar à disposição a nossa rede de acolhimento”, destacou.

Para os que desejam, atualmente a cidade de São Gonçalo possui dois abrigos conveniados junto à Secretaria de Desenvolvimento Social. São eles: Albergue da Misericórdia, para homens, e Abrigo Santa Rita, para mulheres, de 18 a 59 anos.

Dentre os que escolhem permanecer nas ruas, algo em comum une as muitas histórias: desavenças familiares e o uso abusivo de álcool e outras drogas, desdobramentos da situação de extrema pobreza e vulnerabilidade. Como foi o caso de Targa Miranda, de 35 anos. Ela conta que as suas memórias de infância são todas de internação em colégio interno. Aos 18, quando saiu da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), no Barreto, foi morar com a mãe. E diferente do acolhimento esperado, o que recebeu foram maus-tratos e violência.

“Eu fui ainda bebê para um desses colégios internos. Quando voltei para casa sofri muito e decidi ir para a rua. Já na rua comecei a usar todo tipo de droga, desde o álcool até cocaína e crack. Hoje eu tenho uma filha de 14 anos que mora com a avó. Há três meses não uso nenhuma droga, consegui isso com muita força de vontade e ajuda dos meus companheiros de rua. Se eu pudesse mesmo eu teria um emprego. Peço dinheiro na rua e quando dá eu vendo alguma coisa. Pouca gente ajuda. Se eu pudesse mudar de vida eu faria um futuro diferente para a minha filha e para mim!”, afirmou.

Para a psicóloga do Centro POP, Fernanda Reis, que acompanha as abordagens e realiza também atendimento na unidade, as profundas e históricas desigualdades do país, que geram pobreza e vulnerabilidade nas populações que possuem maior dificuldade de acessar os serviços públicos, fazem as ruas ter jeito, cor e histórias que se cruzam.

“O desemprego é uma das causas dessas pessoas estarem nas ruas. A partir do momento em que ela perde o emprego, ela não tem condições de arcar com a própria vida. E muitas vezes recorre ao uso abusivo do álcool e outras drogas. Em um país com desigualdade social profunda, pensar a saída, caso essas pessoas queiram, das ruas, é um grande desafio. Cada um tem sua história. Entender o mundo deles e possibilitar o acesso à política pública, é para isso que a gente está aqui!”, ressaltou.

Junto às equipes do Centro POP, está também o Consultório de Rua. Implementado em São Gonçalo há cinco anos, é instituído pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e integra a rede de atenção psicossocial. Fundamentado pela Política Nacional para a População em situação de rua e Política Nacional de Atenção Básica, em São Gonçalo, o Consultório é formado por enfermeiro, técnico de enfermagem, médico, assistente social e agente social, uma equipe que atua em todo o município garantindo a universalidade do Sistema único de Saúde (SUS) para todos.

“A verdade é que essas pessoas são invisíveis à sociedade. O que nos falta hoje é empatia. As pessoas não compreendem que se eu perder o meu emprego, a minha casa e tudo o que eu tenho, o que acontece? Eu posso ir para a rua. E cada pessoa em situação de rua, que poderia ser qualquer um de nós, tem direitos. A rua é um lugar público e existe a escolha dos que querem ficar. Nós não tiramos ninguém da rua, ofertamos cuidado. Independente das circunstâncias que levaram essas pessoas às ruas, elas têm direitos. A política pública não pode tirar a autonomia das pessoas!”, destacou a coordenadora do Consultório na Rua de São Gonçalo, Lidyane Salles. Além das abordagens, o Consultório possui uma Unidades Básica de Saúde (UBS) localizada no Polo Sanitário Hélio Cruz, em Alcântara, onde também realiza atendimentos, exames, cuidados com feridas e demais complexidades, e emite o cartão do SUS.

Para que o caminho do cuidado seja um lugar de todos, para além do trabalho intersetorial da rede, a psicóloga, sanitarista e articuladora intersetorial e comunitária da rede de saúde mental de São Gonçalo, Kassia Rapella, afirma que é preciso desarmar o estigma sobre essa população.

“As pessoas em situação de rua são pessoas, e isso não é compreendido pela maioria da população. Eles são cidadãos contribuintes como todos nós, inclusive a maioria são trabalhadores, e a gente precisa garantir esse acesso à saúde. A pessoa em situação de rua é vista com estigma, sobretudo as pessoas negras. A gente sabe que tem cor e classe social essas pessoas que a população quer tirar da frente e quer higienizar. Entender isso é importante, dentro da saúde temos uma política voltada para a saúde da população negra. A gente precisa entender que os serviços têm responsabilidade com isso, e para garantir equidade dentro do SUS precisamos considerar o racismo como uma questão estrutural e trabalhar isso nos serviços!”, enfatizou.

De acordo com a psicóloga, a ideia da rede de serviços é que todas as políticas públicas, o que inclui cultura, educação, saúde, assistência social, dentre outras, trabalhem em conjunto, para a produção de bem-estar e vida de cada cidadão.

“A rua é um cenário de muito desgaste e violação, não é bom e confortável, mas é uma escolha, devido a uma série de situações de violação que essa pessoa passou e que não cabe a gente dizer o que é melhor para ela. A gente precisa dar lugar para o sujeito dizer o que é melhor para ele!”, disse.

Na proposta do enfrentamento à estigmatização, promover saúde, bem-estar e qualidade de vida também perpassam por acessar espaços de cultura e lazer. O que para Arlete Inácio, cientista social e articuladora intersetorial e comunitária no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS AD) do Alcântara, é preciso pensar o sujeito em sua integralidade. Cada pessoa tem sua história, seja na rua ou para além dela.

“A nossa proposta de abordagem tem uma perspectiva de redução de danos, entendendo que nem todo mundo quer parar de usar drogas ou que nem todo mundo consegue parar de usar drogas. Nessa perspectiva de que o mais importante é pensar a saúde de uma forma mais geral, pensar em qualidade de vida. Nós queremos criar vínculos, e junto com eles construir novas saídas e novas formas de estar no mundo. O que a gente preza é o respeito entendendo que ali é um território de moradia, de sociabilidade e trabalho. Um território de vida. E que o território é o local onde eles estão!”, afirmou.

Autor: Thayná Valente
Foto: Lucas Alvarenga

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